O tema “estabelecidos e outsiders” iniciou o segundo bimestre de 2015 e fechou a discussão
que vínhamos fazendo desde o bimestre anterior sobre imigração, migração e a
noção de estrangeiro sob o olhar da Sociologia. Outsider, em uma livre tradução, significa “aquele que é ou vem de
fora”, enfim, aquele que originalmente não faz parte de um determinado meio e é
estigmatizado por isso.
Foi o sociólogo Norbert Elias (1897-1990) o formulador da
relação “estabelecidos e outsiders”, que
vem sendo utilizada pela Sociologia desde então para analisar várias situações
em que um grupo humano estigmatiza e discrimina outro.
Nascido em Breslau, na época pertencente à Alemanha
(hoje, a cidade faz parte da Polônia), Elias escreveu um livro clássico na
Sociologia, em parceria com John Scotson, chamado “Os estabelecidos e os outsiders” (1965), fruto de uma pesquisa
realizada por ambos para investigar as tensões existentes em uma pequena cidade
inglesa (no livro, batizada com o nome fictício de Winston Parva).
Inicialmente, Elias e Scotson pretendiam estudar as
diferenças nos níveis de delinquência registrados em dois bairros, o mais
tradicional e o mais novo de Winston Parva. No decorrer da pesquisa, mudaram o
foco de análise. Isso aconteceu porque, embora as diferenças nos níveis de
delinquência praticamente não existissem, quando comparados os dois bairros, o
bairro mais tradicional continuava classificando o mais novo como local violento.
O estudo permitiu, portanto, identificar um tema universal: como um grupo
estabelecido estigmatiza um outro grupo, tratando-o como outsider.
Os estabelecidos consideram-se humanamente superiores aos
outsiders (em toda relação de
preconceito está implícita a ideia de superioridade). Os estabelecidos
recusam-se a ter qualquer outro tipo de contato com os outsiders que não seja profissional. Razões que podem fazer com que
o primeiro grupo hostilize o segundo: diferenças socioeconômicas, de classe, de
religião, étnicas, raciais, de estilos de vida, costumes, etc. Notem que o
preconceito, no caso, não é individual, é coletivo, é como se os outsiders fossem portadores de uma
desonra grupal.
Resumo da pesquisa
conduzida por Elias e Scotson
A cidade inglesa de Winston Parva era composta por três
zonas, chamadas no estudo de zonas 1, 2 e 3. Na zona 1, quase a totalidade das
famílias era de classe média (em suas bordas, havia algumas poucas residências
proletárias), o nível de escolarização era mais alto e as casas eram mais
amplas e tinham um padrão nitidamente superior às existentes nas zonas 2 e 3.
Além disso, havia empresários residindo no local, bem como profissionais
tecnicamente mais qualificados, como engenheiros. As famílias tinham poucos
filhos e mantinham uma certa atitude de distanciamento em relação à vizinhança,
característica marcante de pessoas que passaram pelo aburguesamento dos modos:
as pessoas frequentavam pouco as casas umas das outras e nunca sem antes
avisar, tinham reduzida atuação social, eram contidas, discretas, silenciosas,
circunspectas. Como algumas dessas famílias eram originárias da zona 2 e
mudaram-se para a zona 1 quando ascenderam socialmente, passaram a ser
admiradas pelos moradores da zona 2. Por fim, a criminalidade era baixa e os
jovens não tinham problemas com a Justiça.
As zonas 2 e 3 apresentavam muitos aspectos semelhantes.
Eram bairros proletários, formados basicamente por mão-de-obra operária, as
famílias tinham mais filhos e o nível educacional era significativamente mais
baixo que na zona 1 (os bairros das zonas 2 e 3 abrigavam desde operários mais
qualificados até trabalhadores braçais). Não havia diferenças étnicas,
religiosas, econômicas e educacionais marcantes entre os moradores das zonas 2
e 3. Porém, como os moradores da zona 2 chegaram à Winston Parva no início da
constituição da localidade, criaram fortes laços sociais e uma impressionante
coesão interna. Apresentavam um nível intenso de interação, que se aprofundava
à medida que muitos dos casamentos aconteciam entre integrantes das famílias do
bairro, fazendo com que a zona 2 ganhasse a conformação de uma “grande e única
família”. Essa coesão criava princípios rígidos de conduta, cuja obediência
proporcionava status a quem andava na linha e a desobediência condenava o
“desviante” ao ostracismo e a todo tipo de recriminações públicas ou veladas,
por meio das fofocas. Esses fortes laços resultavam em um ambiente de grande
vigilância de uns sobre os outros, mas também era eficaz na resolução de
problemas dos seus membros. As famílias pioneiras, as que chegaram no início da
conformação do bairro, tinham ainda uma forte ascendência moral sobre todos.
Embora Elias tenha mencionado que aos olhos de um
forasteiro as zonas 2 e 3 fossem bairros bastante semelhantes, tanto na
configuração das ruas e de suas casas simples, como nas características
étnicas, religiosas, educacionais e econômicas, os habitantes da zona 2 eram
orgulhosos do bairro em que viviam e repetidamente manifestavam a sua percepção
de grande superioridade em relação aos moradores da zona 3. Na zona 2, ainda
havia algumas poucas residências de classe média, o que aumentava a sensação de
orgulho dos moradores por seu bairro.
Se dos pontos de vista urbanístico, arquitetônico,
econômico, étnico, educacional e religioso a zona 3 era muito parecida com a zona
2, o fato de a primeira reunir moradores que chegaram aos poucos, especialmente
durante a Segunda Guerra e após os bombardeios realizados pelos alemães em
Londres, fez com que seus moradores levassem uma vida autônoma marcada pela
reserva, sem muitas relações sociais e sem os fortes vínculos que
caracterizavam a zona 2 e determinavam as condutas de seus habitantes.
Considerados, por seu estilo de vida, como uma ralé pelos moradores da zona 2,
alguns habitantes da zona 3 demonstravam ressentimento – especialmente os
jovens, que muitas vezes provocavam arruaças e tinham problemas com a lei – e
outros acabavam por reconhecer como legítimas as discriminações que sofriam. A zona
3 ainda tinha uma minoria de casas bastante pobres, habitadas por pessoas mais
rudes e barulhentas, que frequentemente se envolviam em problemas com a
polícia. Injustamente, o comportamento de uma minoria era tomado como se fosse
da maioria. Muitos dos moradores da zona 3 ouvidos por Elias e Scotson
manifestaram o interesse de deixar o bairro, um comportamento diametralmente
oposto ao registrado na zona 2, cujos moradores só imaginavam deixar o bairro
se fosse para se mudar para a zona 1.
Basicamente, portanto, a diferença entre as zonas 2 e 3,
segundo Elias, era a forte coesão social e os intensos vínculos de uma vida
conjunta presentes na zona 2, bairro que também concentrava grande parte das
igrejas, clubes, associações e pubs de Winston Parva, equipamentos que
colaboravam para o fortalecimento desses vínculos. A coesão dava mais poder aos moradores da zona 2, que, sentindo-se
ameaçados pelos outsiders, rechaçavam
este grupo. O embate trata-se, assim, de uma luta por poder. A pesquisa também
evidencia que grupos organizados podem alcançar mais facilmente o poder. A
coesão é alcançada quando ocorre a total aceitação das regras do grupo por seus
integrantes.
O choque de estilos de vida proporcionava a forte
discriminação dos moradores das zonas 1 (de forma mais branda) e 2 (muito
intensa) em relação aos moradores da zona 3, que eram vistos como rudes, sujos,
barulhentos, promíscuos, beberrões, desonestos e arruaceiros pelos demais
moradores de Winston Parva.
Que tipo de luta
se desenvolve entre grupos estabelecidos e grupos outsiders?
Tomando por referência o embate descrito por Norbert
Elias no livro “Os estabelecidos e os outsiders”,
trata-se, na ótica dos atores participantes, da luta dos limpos, bons, justos,
ordeiros, trabalhadores, enfim, “superiores” contra os sujos, promíscuos,
beberrões, vagabundos, arruaceiros, favelados, “inferiores”.
Na verdade, se formos tomar Winston Parva como referência,
é uma luta muito mais dos estabelecidos contra os outsiders do que vice-versa. Até porque só os estabelecidos têm
coesão interna, vida comunitária intensa e fortes relações sociais para atuar
como grupo. Os outsiders seriam
caracterizados pela baixa integração. Por isso mesmo, sofrem toda a sorte de
ataques e não conseguem revidar.
É uma luta de estilos de vida, de comportamentos sociais,
para que desse embate seja feita uma hierarquização da sociedade, com
diferenciação de status, assim como Norbert Elias já havia mostrado na obra “O
processo civilizador”. Isso fica claro porque no livro “Os estabelecidos e os outsiders” os bairros de onde surgem e
para onde se direcionam os ataques são habitados por famílias de operários,
marcadas por grande uniformidade econômica, educacional, religiosa e étnica. O
que os diferenciam são a intensa vida comunitária, o grau de coesão interna
construído ao longo de várias gerações na zona 2 e os fortes vínculos sociais e
familiares, elementos que criam rígidas normas de conduta privadas e coletivas
e punições implacáveis a quem se desgarra das normas.
Por considerar o seu estilo de vida muito superior ao dos
outsiders, os estabelecidos colocam-se
em posição de superioridade, assim como o bairro em que vivem. Recém-chegados,
sem vínculos sociais e acuados, resta aos outsiders
o ressentimento (ou a resignação).
Os embates ocorridos na pequena cidade inglesa de Winston
Parva servem, para Norbert Elias, como microcosmo para a compreensão do
funcionamento da sociedade de forma geral.
Comportamentos
típicos de grupos estabelecidos e grupos outsiders
De acordo com Norbert Elias, os estabelecidos seriam
caracterizados por uma forte coesão social, estruturada em vínculos bastante
rígidos que criariam um sistema geral de fiscalização de condutas. Esse sistema
premiaria as atitudes consideradas positivas por esse grupamento de pessoas e
puniria os desviantes com a perda de status na comunidade, o ostracismo e o
ataque à reputação por meio de fofocas e difamações veladas. Os vínculos, no
caso da zona 2, foram estabelecidos pela antiguidade da comunidade – chegaram
ao bairro quando ele começara a se formar –, pela composição familiar
(casamentos entre integrantes das famílias do bairro fizeram com que surgisse,
na verdade, uma grande família) e pela intensa vida social e comunitária em
igrejas, associações, clubes e pubs.
Já os outsiders
seriam caracterizados por uma vida sem vínculos sociais com a comunidade e por
um estilo de vida basicamente marcado pela baixa coesão. Se na zona 1 de
Winston Parva a atitude de reserva era vista como sinal de distinção, educação
diferenciada, discrição e aburguesamento dos modos, no “beco dos ratos” (zona
3) a mesma atitude de reserva era vista como fragilidade de caráter, sinal de
desonestidade, decadência moral e toda sorte de comportamentos desprezíveis. Ou
seja, a incompatibilidade de estilos de vida é que faz um grupo ganhar o status
de estabelecidos ou o estigma de outsiders.
Elias parte da análise das relações entre os moradores
das três zonas de Winston Parva não apenas para identificar os estabelecidos e
os outsiders na cidade industrial
inglesa, mas também para compreender as características que tornam determinados
grupos como estabelecidos e outsiders
em sociedades dos mais variados tipos. Winston Parva funciona como um pequeno
laboratório para tirar conclusões mais abrangentes sobre o funcionamento da
sociedade de forma geral.